Rubem Fonseca
Em matéria de leitura eu sou onívoro, ou polífago, se preferem. Leio tudo o que aparece na minha frente. Mas as duas leituras preferidas por mim são, respectivamente, poesia e bula de remédio. Guardo, ou guardava todas as bulas dos remédios que eu consumia (mas não sou hipocondríaco), e fiquei muito desgostoso quando a caixa cheia delas sumiu. Até hoje não sei se alguém a furtou (havia bulas não apenas em português, mas em inglês, francês, espanhol e alemão; muitas vezes eu comprava um remédio só para ter uma bula, mesmo se fosse em uma língua com a qual eu estivesse pouco familiarizado) ou se foi uma vingança soez de algum inimigo, ou excesso de zelo de alguma faxineira ao limpar o chamado Quarto dos Macacos, um cômodo que tenho na minha casa. O que aconteceu, o sumiço da caixa de bulas, é um mistério. Ela não possuía qualquer valor de mercado, e eu não tenho inimigos, ainda mais tão terríveis a ponto de fazer um agravo dessa natureza, roubar um bem que me era tão precioso. E as faxineiras estão proibidas de entrar no Quarto dos Macacos, a não ser acompanhadas por mim. A minha empregada fixa é maníaca por limpeza e sempre diz palavras desanimadoras sobre a bagunça do Quarto dos Macacos. Mas não obstante ela seja obrigada a ler uma hora por dia — em qualquer um das centenas de livros que tenho na minha estante — sob pena de eu torcer o braço dela, eu nunca a obriguei a ler bula de remédio. Ela não pode ser a responsável. Mas o certo é que aquele acervo fantástico de mais de mil bulas desapareceu, para meu profundo desgosto.
A bula, da mesma forma que a poesia, tem as suas metáforas, os seus eufemismos, os seus mistérios, e as partes melhores são sempre as que vêm sob os títulos “precauções” e/ou “advertências” e “reações adversas”. Essa parte da bula certamente é produzida por uma equipe da qual fazem parte cientistas, gramáticos, advogados especializados em ações indenizatórias, poetas, criptógrafos, advogados criminalistas, marqueteiros, financistas e planejadores gráficos. Você tem que alertar o usuário dos riscos que ele corre (e não se iludam, todo remédio tem um potencial de risco), ainda que eufemicamente, pois se o doente sofrer uma reação grave ao ingerir o remédio, o laboratório, através dos seus advogados, se defenderá dizendo que o doente e o seu médico conheciam esses riscos, devidamente explicitados na bula.
Vejam esta maravilha de eufemismo, de figura de retórica usada para amenizar, maquiar ou camuflar expressões desagradáveis empregando outras mais amenas, ou incompreensíveis. Trecho da bula de um determinado remédio: “Uma proporção maior ou mesmo menor do que 10% de…” (não cito o nome do remédio, aconselhado pelo meu advogado) “pode causar uma toxidade que pode evoluir para exitus letalis” (o itálico é da bula).
Qual o poeta, mesmo entre os modernos, os herméticos ou os concretistas, capaz de eufemizar, camuflando, de maneira tão rica, o risco de morte — “evoluir para exitus letalis”?
Ao criar essa bula, seus autores precisavam evitar qualquer dos vocábulos que poderiam dizer diretamente, em bom vernáculo, o que significa esse risco — exitus letalis — que o usuário do remédio enfrenta: falecer, morrer, expirar, perecer. Mas isso tem que ser evitado, é assustador, muito mais do que as gírias bem-humoradas do cotidiano, como abotoar o paletó, apagar, bater as botas, comer capim pela raiz, embarcar deste mundo para um melhor, empacotar, entregar a rapadura, esticar a canela, ir para a cidade dos pés juntos, ir para a cucuia, vestir o pijama de madeira, virar presunto. (Eles, os autores da bula, evidentemente não poderiam dizer, como deviam, para que a choldra os entendesse: “Se você tomar este remédio pode bater as botas” ou “ir para a cucuia”. O departamento jurídico não deixaria.)
Para dar apenas dois exemplos de como essas duas palavras latinas juntas são sedutoras: existe uma banda de rock com esse nome na Alemanha, ou pelo menos existia da última vez em que estive nesse país comprando bulas de remédio; a editora Geração Editorial publicou um livro intitulado Exitus letalis — O direito a uma morte digna, do dr. Reginaldo Ustariz Arze. O dr. Kevorkian devia ter usado essa terminologia quando ajudava os seus pacientes a morrerem. Talvez não se desse tão mal.
Cenário de filme dramático. Dois velhos hospitalizados, doentes, em cadeiras de rodas, conversam.
Primeiro doente: “O meu médico resolveu marcar o meu exitus letalis para a semana que vem”.
Segundo doente: “O que é isso?”
Primeiro doente: “Não sei. Acho que tem a ver com essas pintas escuras da minha cabeça. Deve ser uma daquelas intervenções a laser. Mas não estou preocupado, o meu médico e a minha família cuidam bem de mim”.
Segundo doente: “A medicina está muito adiantada”.
Infelizmente eu não tenho mais a minha coleção universal de bulas de remédio. Mas hoje comprei, ao acaso, um remédio na farmácia e fui logo atraído por este trecho da bula, esta maravilha escrita em letras miudinhas, a famosa small print usada pelos advogados vigaristas americanos nos contratos que realizam com os otários: “O produto é bem tolerado, podendo causar dor de cabeça, edema, fadiga, sonolência, náusea, dor abdominal, rubor, palpitações, tonturas” (juro que não estou inventando coisa alguma, agora é que vem a parte melhor), “alopecia, função intestinal alterada” (um bom eufemismo para caganeira, com perdão da palavra), “artralgia, astenia, dispepsia, dispnéia, hiperglicemia, hiperplasia gengival, ginecomastia, impotência” (caramba!, o cara pode ficar broxa!), “aumento da freqüência urinária, leucopenia, mal-estar, mudança nos humores” (Cenário: Paciente: Doutor, não fui alertado que podia sentir vontade de me matar. Médico: Como não? Veja aqui, mudança de humores, mal-estar. Vontade de se matar é, conforme a literatura médica, o pior de todos os mal-estares), “neuropatia periférica, pancreatite, sudorese, síncope, trombocitopenia, vasculite e distúrbios visuais, hipotireoidismo, hepatite, icterícia”.
Tenho esta obra-prima aqui na minha frente. Estou pensando em mandar enquadrá-la. Encerro por aqui. Quem estiver interessado em saber o que é alopecia, ginecomastia, artralgia, leucopenia e outros termos que não conhece, que vá ao dicionário. Que passem bem, todos.
Rubem Fonseca. O romance morreu. Crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Imagem: http://mdemulher.abril.com.br/saude/