sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Não existem trezentos poetas




Rainer Maria Rilke



(...) Estou sentado e leio um poeta. Há muitas pessoas no salão, mas não as notamos. Elas estão nos livros.  Às vezes se movem nas páginas como se estivessem dormindo e se virassem entre dois sonhos. Ah, como é bom estar entre pessoas que leem. Por que não são sempre assim? Você pode se aproximar de uma delas e tocá-la de leve: ela não sente nada. E se, ao levantar, você encosta um pouco em seu vizinho e se desculpa, ele inclina a cabeça para o lado em que ouviu a sua voz, seu rosto se volta na sua direção e não o vê, e seu cabelo é como o cabelo de alguém que dorme. Como isso faz bem. E estou sentado e tenho um poeta. Que sorte. Agora talvez haja trezentas pessoas lendo no salão; mas é impossível que cada uma tenha um poeta. (Sabe Deus o que elas têm.) Não existem trezentos poetas. (...)


Rainer Maria Rilke. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. L&PM, Porto Alegre, RS, 2010, p. 32.
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O romance morreu?





Rubem Fonseca


Muito antes de publicar o meu primeiro livro eu já ouvia dizer que o romance e o conto estavam mortos. Parece que a primeira morte teria sido anunciada ainda em 1880, não obstante, como todos sabem, Emily Dickinson, Tchekov, Proust, Joyce, Kafka, Maupassant, Henry James, o nosso Machado, Eça, Mallarmé, as Bronte, Fernando Pessoa (um pouco mais tarde) estivessem ativos naquela época.
No início do séc. XX, com o lançamento, por Henry Ford, do Ford Model T, um automóvel popular, construído numa linha de montagem, um carro barato que em poucos anos vendeu mais de quinze milhões de unidades, as Cassandras afirmaram que agora a literatura de ficção, na qual se incluía a poesia, estava mesmo com os dias contados. Dentro de pouco tempo todas as pessoas teriam automóvel e usariam o carro para passear, fazer compras, namorar em vez de ficarem em casa lendo. Ou porque não soubessem o que lhes reservava o futuro, ou lá porque fosse, o certo é que muitos escritores, como Yeats, Benavente, Galsworthy, Selma Lagerlof, Rilke, Kavafis, Edna St. Vincent Millay continuaram escrevendo, e talvez até mesmo tivessem um Model T na garagem deles.
Nova anunciação mortal veio logo em seguida, causada pelo cinema, denominado de Sétima Arte. Uma pesquisa da época mostrou que em cada 100 pessoas 80 freqüentavam o cinema e 2 (duas!) liam livros de ficção. Agora mesmo é que a literatura, enfim, havia morrido. Desta vez não tinha salvação. Mas Sinclair Lewis, Thomas Mann, Bunin, Céline, Ana Akhmatova, O’Neill, Pirandello, e muitos outros não sabiam disso. (Os dois últimos são autores de teatro, mas o teatro começou a morrer antes).
Depois nova morte foi profetizada, quando do advento da televisão. Mas William Faulkner, Eliot, Gide, Hesse, Quasimodo, Pasternak, Camus, Hemingway, Beckett, Seferis, Kawabata, Mauriac, Steinbeck e muitos mais não pararam de escrever. Que diabo, esses caras não liam os jornais? Não sabiam que a literatura de ficção havia morrido?
Afinal veio o golpe de misericórdia: o computador e a Internet. Era a pá de cal. Mas o que estava acontecendo? Quem são (ou eram) esses loucos escrevendo poesia e romance – Carlos Drummond de Andrade, Czeslaw Milosz, João Cabral, Pablo Neruda, Montale, Heinrich Böll, Saul Bellow, Isaac Bashevis Singer, Octavio Paz, Brodsky, García Márquez (“se você diz que o romance está morto, não é o romance, é você que está morto”), Canetti, Günter Grass, Kenzaburo Oe, Saramago, João Ubaldo, Ferreira Gullar e um montão de outros? O que na realidade está acontecendo?
Existem muitos estudos interessantes e extensos sobre o assunto, como o da ensaísta Leila Perrone-Moisés, em seu livro Altas literaturas (Companhia das Letras, 1998). Uma coisa talvez esteja acontecendo: a literatura de ficção não acabou, o que está acabando é o leitor. Poderá vir a ocorrer este paradoxo, o leitor acaba mas não o escritor? Ou seja, a literatura de ficção e a poesia continuam existindo, mesmo que os escritores escrevam apenas para meia dúzia de gatos pingados?
Kafka escrevia para um único leitor: ele mesmo. Recordo Camões. Ele era um arruaceiro, e acabou na prisão, ou por motivos de suas rixas ou por ter se envolvido com a infanta Dona Maria, irmã do rei João III. Para obter o perdão do rei ele propôs-se a servi-lo na Índia, como soldado. Lá ficou 16 anos e, afinal, a bordo de um navio voltou para Portugal, acompanhado de uma jovem indiana, que ele amava, e a quem dedicou o lindo soneto “Alma minha gentil, que te partiste”. O navio naufragou e Camões só pensou, durante o naufrágio, em uma coisa: salvar o manuscrito dos Lusíadas e dos seus poemas. Deixou a mulher amada morrer afogada (confesso que especulo), e perdeu todos os seus bens, mas salvou os seus manuscritos. Para quem ler? Estávamos no século 16 e muita pouca gente em Portugal sabia ler. Mas Camões pensou nesse punhado de leitores, era para eles que Camões escrevia, não importava quantos fossem eles.
Os leitores vão acabar? Talvez. Mas os escritores não. A síndrome de Camões vai continuar. O escritor vai resistir.

Rubem Fonseca. O romance morreu. Crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.  



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Exitus letalis




Rubem Fonseca


Em matéria de leitura eu sou onívoro, ou polífago, se preferem. Leio tudo o que aparece na minha frente. Mas as duas leituras preferidas por mim são, respectivamente, poesia e bula de remédio. Guardo, ou guardava todas as bulas dos remédios que eu consumia (mas não sou hipocondríaco), e fiquei muito desgostoso quando a caixa cheia delas sumiu. Até hoje não sei se alguém a furtou (havia bulas não apenas em português, mas em inglês, francês, espanhol e alemão; muitas vezes eu comprava um remédio só para ter uma bula, mesmo se fosse em uma língua com a qual eu estivesse pouco familiarizado) ou se foi uma vingança soez de algum inimigo, ou excesso de zelo de alguma faxineira ao limpar o chamado Quarto dos Macacos, um cômodo que tenho na minha casa. O que aconteceu, o sumiço da caixa de bulas, é um mistério. Ela não possuía qualquer valor de mercado, e eu não tenho inimigos, ainda mais tão terríveis a ponto de fazer um agravo dessa natureza, roubar um bem que me era tão precioso. E as faxineiras estão proibidas de entrar no Quarto dos Macacos, a não ser acompanhadas por mim. A minha empregada fixa é maníaca por limpeza e sempre diz palavras desanimadoras sobre a bagunça do Quarto dos Macacos. Mas não obstante ela seja obrigada a ler uma hora por dia — em qualquer um das centenas de livros que tenho na minha estante — sob pena de eu torcer o braço dela, eu nunca a obriguei a ler bula de remédio. Ela não pode ser a responsável. Mas o certo é que aquele acervo fantástico de mais de mil bulas desapareceu, para meu profundo desgosto.
A bula, da mesma forma que a poesia, tem as suas metáforas, os seus eufemismos, os seus mistérios, e as partes melhores são sempre as que vêm sob os títulos “precauções” e/ou “advertências” e “reações adversas”. Essa parte da bula certamente é produzida por uma equipe da qual fazem parte cientistas, gramáticos, advogados especializados em ações indenizatórias, poetas, criptógrafos, advogados criminalistas, marqueteiros, financistas e planejadores gráficos. Você tem que alertar o usuário dos riscos que ele corre (e não se iludam, todo remédio tem um potencial de risco), ainda que eufemicamente, pois se o doente sofrer uma reação grave ao ingerir o remédio, o laboratório, através dos seus advogados, se defenderá dizendo que o doente e o seu médico conheciam esses riscos, devidamente explicitados na bula.
Vejam esta maravilha de eufemismo, de figura de retórica usada para amenizar, maquiar ou camuflar expressões desagradáveis empregando outras mais amenas, ou incompreensíveis. Trecho da bula de um determinado remédio: “Uma proporção maior ou mesmo menor do que 10% de…” (não cito o nome do remédio, aconselhado pelo meu advogado) “pode causar uma toxidade que pode evoluir para exitus letalis” (o itálico é da bula).
Qual o poeta, mesmo entre os modernos, os herméticos ou os concretistas, capaz de eufemizar, camuflando, de maneira tão rica, o risco de morte — “evoluir para exitus letalis”?
Ao criar essa bula, seus autores precisavam evitar qualquer dos vocábulos que poderiam dizer diretamente, em bom vernáculo, o que significa esse risco — exitus letalis — que o usuário do remédio enfrenta: falecer, morrer, expirar, perecer. Mas isso tem que ser evitado, é assustador, muito mais do que as gírias bem-humoradas do cotidiano, como abotoar o paletó, apagar, bater as botas, comer capim pela raiz, embarcar deste mundo para um melhor, empacotar, entregar a rapadura, esticar a canela, ir para a cidade dos pés juntos, ir para a cucuia, vestir o pijama de madeira, virar presunto. (Eles, os autores da bula, evidentemente não poderiam dizer, como deviam, para que a choldra os entendesse: “Se você tomar este remédio pode bater as botas” ou “ir para a cucuia”. O departamento jurídico não deixaria.)
Para dar apenas dois exemplos de como essas duas palavras latinas juntas são sedutoras: existe uma banda de rock com esse nome na Alemanha, ou pelo menos existia da última vez em que estive nesse país comprando bulas de remédio; a editora Geração Editorial publicou um livro intitulado Exitus letalis  O direito a uma morte digna, do dr. Reginaldo Ustariz Arze. O dr. Kevorkian devia ter usado essa terminologia quando ajudava os seus pacientes a morrerem. Talvez não se desse tão mal.
Cenário de filme dramático. Dois velhos hospitalizados, doentes, em cadeiras de rodas, conversam.
Primeiro doente: “O meu médico resolveu marcar o meu exitus letalis para a semana que vem”.
Segundo doente: “O que é isso?”
Primeiro doente: “Não sei. Acho que tem a ver com essas pintas escuras da minha cabeça. Deve ser uma daquelas intervenções a laser. Mas não estou preocupado, o meu médico e a minha família cuidam bem de mim”.
Segundo doente: “A medicina está muito adiantada”.
Infelizmente eu não tenho mais a minha coleção universal de bulas de remédio. Mas hoje comprei, ao acaso, um remédio na farmácia e fui logo atraído por este trecho da bula, esta maravilha escrita em letras miudinhas, a famosa small print usada pelos advogados vigaristas americanos nos contratos que realizam com os otários: “O produto é bem tolerado, podendo causar dor de cabeça, edema, fadiga, sonolência, náusea, dor abdominal, rubor, palpitações, tonturas” (juro que não estou inventando coisa alguma, agora é que vem a parte melhor), “alopecia, função intestinal alterada” (um bom eufemismo para caganeira, com perdão da palavra), “artralgia, astenia, dispepsia, dispnéia, hiperglicemia, hiperplasia gengival, ginecomastia, impotência” (caramba!, o cara pode ficar broxa!), “aumento da freqüência urinária, leucopenia, mal-estar, mudança nos humores” (Cenário: Paciente: Doutor, não fui alertado que podia sentir vontade de me matar. Médico: Como não? Veja aqui, mudança de humores, mal-estar. Vontade de se matar é, conforme a literatura médica, o pior de todos os mal-estares), “neuropatia periférica, pancreatite, sudorese, síncope, trombocitopenia, vasculite e distúrbios visuais, hipotireoidismo, hepatite, icterícia”.
Tenho esta obra-prima aqui na minha frente. Estou pensando em mandar enquadrá-la. Encerro por aqui. Quem estiver interessado em saber o que é alopecia, ginecomastia, artralgia, leucopenia e outros termos que não conhece, que vá ao dicionário. Que passem bem, todos.

Rubem Fonseca. O romance morreu. Crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 

Imagem: http://mdemulher.abril.com.br/saude/
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Elas disseram...


                                                             Foto: Márcia Oliveira



Amei seu livro "Velhota, eu?". Torcia para que não acabasse nunca! Maravilhoso!
Beijos
Vânia Moreira Diniz

Querida Luci, só hoje li o novo Velhota. Adorei, adorei. Ri sozinha e chorei escondida enquanto pintava meu cabelo no salão...
Beijos e muito obrigada.

Maria Célia Corrêa

Muito sucesso, moça. O livro é maravilhoso.
Olivia Maria Maia

Querida Luci Afonso, estou amando o presente que você me ofereceu: a sua obra Senhora dos Gatos – literatura de excelência.

Onã Silva


Olá, Luci, recebi o novo Velhota e fiquei louca de alegria, ainda mais vendo o meu texto na orelha. Já o indiquei para uma aluna minha para que trabalhe com os educand@s jovens e adultos na escola onde ela está estagiando. Li para ela uma das minha crônicas preferidas: Barriguda. Ela adorou. Beijo grande e parabéns por tamanha belezura com que nos presenteia. 

Miliane Benício 

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A segunda cigarra




Luci Afonso


Levanta, filho! A manhã está fresca com a chuva da noite. O céu de tão azul parece pintura. A grama ainda está úmida, há poças dágua no parquinho. As crianças estão começando a descer. Lembra o Tavinho? Já está andando: dá uma corridinha, para, corre de novo, às vezes cai. A avó, preocupada, fica atrás dele. Os dois dão uma corridinha, param, correm mais um pouco. Tem babá nova no prédio, daquele menino chorão que eu não sei o nome. Acho que é Pedro. Dona Rita viajou de novo para ver a irmã doente. Vou fazer uma visitinha ao Seu Inácio, coitado, ficou sozinho.

Escutou a primeira cigarra, filho? Foi ontem antes da chuva. Todo ano dizem que elas vão ser extintas, todo ano elas voltam! Já pensou, acabar essa cantoria que a gente adora? A Dévon ficou doida na janela, querendo pegar o bichinho. Vamos achar uma pra ela brincar? Preciso lembrar de pedir ração. Também é hora da vacina. Abriu uma clínica ali na quadra. Peguei o cartão, tem um nome engraçado.

Conseguiu dormir, filho? Sonhei a noite inteira com a vovó. A Dévon ficou arranhando a porta do quarto. Seu irmão ligou, já era tarde. Eu disse que você estava melhor. Que saudade! Será que está tomando os remédios? Por falar nisso, é hora do seu. Ele vem em dezembro, se o curso não estiver muito puxado. Já fez dois roteiros!

E o violão, filho? A casa ficava tão alegre quando você tocava! O professor ligou te procurando. Eu disse que você ia voltar logo. Ele mandou as últimas aulas pro seu e-mail. Aquela menina da sua turma também ligou. Aquela gordinha, de aparelho, eu sempre esqueço o nome. Ela quer te visitar.

Está com fome, filho? Seu pai foi na padaria, vai trazer a broinha que você gosta. Pedi pra ele também trazer pão de queijo, me deu vontade. O almoço hoje é comida chinesa, vamos pedir ao meio-dia. Quando a vista estiver boa, eu volto a cozinhar.

Escutou, filho? A segunda cigarra!

Luta, filho!
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Oração do Novo Leitor


                                                               Arte: Eudaldo Sobrinho e Felipe Cavalcante

Luci Afonso


Às professoras e alunos do EJA


Palavra Nossa

Palavra Nossa, que derramais o Mel,
Significado seja o Vosso Nome.
Venha a nós a Vossa Linguagem
Seja feita a Vossa Verdade,
Assim na voz como no papel.
O Sentido nosso de cada dia dai-nos hoje.
Abençoai as sentenças
Que temos aprendido
Salvai nossa imaginação
Fortalecei o que graças a Ti
Compreendemos. 
Amém.

Eu sou digno
Senhor, eu sou digno
de que o livro entre em minha alma;
lerei uma só palavra e serei salvo.

Herdeiro de Deus
Herdeiro de Deus,
Que lançais o poema no mundo,
Semeia a Palavra em nós.
Herdeiro de Deus,
Que lançais o poema no mundo,
Dai-nos a Voz.

Novembro de 2013

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O nascimento da crônica






Machado de Assis


Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

 Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

 Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

 Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

 Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

As Cem Melhores Crônicas Brasileiras. Editora Objetiva:  Rio de Janeiro, 2007.

Glossário

Baldo ao naipe = completamente nu
Canícula = grande calor atmosférico
Casimira = tecido encorpado de lã, usado em geral para vestuário
masculino
Coetânea = contemporâneo
Debicar = zombar de, escarnecer
La glace est rompue = o gelo está rompido
Prosápia = linhagem
Tropelias amatórias = brincadeiras de amor




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© Luci Afonso| A Crônica Brasileira